terça-feira, março 31, 2020

Quod scriptum est...

É o que eu digo... promessas ao vento e uma mão dada de palavras por semear. 
Não tenho escrito nada consistente desde 1 de janeiro, aquele 1 de janeiro com  uma lista cheia de coisas para fazer. Uma delas era, é, será – e tantos tempos que forem necessários – escrever com alguma regularidade.  

Falhei, como tenho falhado nalgumas coisas.
Passou-se imensa coisa e o que mais nos tem atormentado tem sido a pandemia do Covid-19.

A primeira vez que ouvira teria sido na tv, sobre a China. Imediatamente fui ao Facebook e procurei informações na página da S.A., que dizia estar a dar aulas em casa. Foi um misto de suspense, alegria, por ela estar bem, e a curiosidade de se dar aulas por videochamada. Passados alguns meses, estou no mesmo barco. A curiosidade foi experimentada e não tem bom sabor.

En passant, em finais de fevereiro, estive em viagem de finalistas com as turmas do secundário. 
Veneza, Florença e Roma. 
Tudo poderia ter sido melhor, se não houvesse um refilão pelo meio, uma mão de alunos armados em seguidores da wodka, uma colega-perigosa, onde o excesso de base já não disfarça as rugas provocadas pelo excesso de sol e horas de ginásio, e o pior, a entrada do Corona Virus em território italiano, a 300kg de Veneza.  

Trocas de emails, grupos no whatsapp, chamadas telefónicas para Lisboa, Viseu e até para o Brasil. Trocas de mensagens. Uma bateria que não chegava para meio dia. Os alunos enojavam-me com a expressão “corona time”, que se repetia sempre que um frasco de álcool era parido de uma algibeira, mas, ao mesmo tempo, as gargalhadas e os raptos da mascote que teve direito a uma página no Instagram, O gin. 

O regresso foi de quarentena, pois as notícias nacionais referiam algumas vezes o nosso grupo.  O medo miudinho de seremos postos de parte no regresso do aeroporto pelos EE ou por perguntas menos transviadas por algum canal noticioso foi saltitando de peito em peito.  

Dias de quarentena. Uma semana de aulas, regresso à quarentena, pois foi tornado público o estado de calamidade e de possibilidade de infeção. 
Pandemia,
do grego παν [pan = tudo/ todo(s)] + δήμος [demos = povo]),
 isto é, a puta de uma doença que passa para a toda a população. Como a Peste Negra na era medieval.

À pala da composição morfológica estou novamente confinado à casa. A dar aulas, a ter reuniões, a tirar dúvidas, mesmo que escassas, pois os alunos nunca têm dúvidas, pois as suas cabeças são mais cristalinas do que a máquina do tempo... e a deprimir, a ver o mar da varanda, o farol do Cabo da Roca a piscar de cinco em cinco segundos, noites a fio, os vizinhos que passeiam os cães, os vizinhos de luvas e máscaras, os vizinhos com sacos de compras, os vizinhos que oiço a entrarem no elevador e fecho a porta do hall de entrada para impedir que o barulho deles me entrem em minha casa. 

As notícias multiplicam de dia para dia, num exercício que podia ser lógico, mas é medonho, o número de mortos. A existência humana diminui. Os gráficos de taxa de mortalidade ultrapassam os nascimentos. É como se num lavatório escorrêssemos a nossa população envelhecida. 

E hoje, no meio de um transe desmedido, dos vários que tenho, fomos a Sintra. Fizemos a estrada sinuosa da Vila à estrada da Praia das Maçãs. Passámos pelos portões da Regaleira, à esquerda, e de Monserrate, à direita, gradeados, com os guichés fechados. 
Sem vivalma. 
O alcatrão estava mais escuro e, agarrado aos muros, havia jarros. 
Trouxe cinco. Lembram-me a tia Micas, o tio Agostinho, o meu pai que diz que sempre que lá estou há flores em casa. 
Por isso, tenho-os na sala, 
Todos os que falei e colhi: 
os jarros, as pessoas e os recortes de verde e alcatrão por onde passei. 

quarta-feira, janeiro 01, 2020

Faz as malas,
Roda o globo,
E na incerteza do sítio que queiras conhecer,
Parte e vai com o vento.

1 de janeiro de 2020




Como é hábito, pelo 1 de janeiro, as pessoas têm uma mão, ou até duas, cheias de desejos para o ano que se advinha. 
Faz-se um rascunho, bem ou mal elaborado, reflexivo ou, simplesmente, momentâneo, com um conjunto de nomes comuns que ambicionam como desejos para mais uma caminhada no calendário de 12 meses. 
Há quem priorize viagens, fins de vícios, melhoramentos de hábitos de alimentação, de equilíbrio emocionais, um rol de coisas que se esquecem no segundo, quando não no primeiro, dia do ano. 
Seria completamente hipócrita se eu não me adicionasse nesse grupo. Há tanto por descobrir, há tanto por se fazer, há tanto para subir essas escadas. Mas também há patamares que devemos parar, contemplar, agradecer e olhar para trás e, com os olhos postos num passado, seja ele muito longínquo, ou não, perceber o quanto nos custou conquistar alguns degraus.
A minha mãe, quando se recorda de me parir, diz que lhe partiram uma costela, para que eu saísse para este mundo, mundo esse que amo e vivo intensamente. Costumo dizer, num tom de brincadeira, como se recordasse, que ao sair, cravei as minhas unhas nas suas entranhas e gritei que a culpa era dela de eu vir ao mundo. Curiosamente, quando me limparam, diz ela que, ao me trazerem para o seu colo, disse que eu era sujo e que me tirasse dali. Nós somos assim, dramáticos, dentro do nosso género de amar. Intensos, imortalizando o momento e deixando estórias que hão de perdurar a cabeça de quem as ouve. 
A caminhada nestes 40 anos tem sido muito positiva, mas nem sempre fácil: passagem por três países, e respetivos continentes, na procura de uma vida, sonho, ambições pessoais e profissionais melhores. O percurso foi tendo pedras, como as que Pessoa deixou num poema. O castelo foi se transformando em estrada, daquelas romanas, que nos definem e que qualquer viajante que nos queira conhecer, compreende porque somos da forma como somos, porque amamos o que amamos, porque temos gargalhadas rasgadas e sonoros ou gritos de raiva, que são somente pedidos de ajuda. 
Neste momento estou num patamar a olhar para os sítios por onde passei, a recordar as pessoas que conheci, os seus defeitos e virtudes, que me fizeram afastar-me ou querê-las ao pé de mim. 
Nesta última década e alguns anos tornei-me professor, por opção e alguma devoção, sem um único dia dizer que fizera uma escolha infeliz. Obviamente que tenho dias menos bons, com confrontos de ideologias que chocam com a estupidez adolescente ou a inconsciência parental, que fazem parte para me moldar, de me ensinar mais sobre o ser-humano, ou como ser melhor educador. 
Na última década também me apaixonei. E continuo apaixonado como no primeiro dia, naquele 4 de setembro. Há barreiras, há intransigências da minha parte, alguma aceitação, poucas resignações, mas, sobretudo, agradecimento por a pessoa ser a pessoa que é: devota, tolerante, de uns olhos redondos e azuis de céu que me transmitem felicidade, calma, mas também alguma raiva pela forma aparentemente despreocupada que tem. Neste patamar também sorrio por estes anos de camaradagem, conforto nos abraços e pela nossa viagem. 
Infelizmente nestes últimos anos tenho passado, também, por momentos menos bons. De algum desgosto com a vida, por me ter tirado algumas pessoas, mais de outras do que minhas, vendo que, de facto, ela é um fio muito fino e perene. Agravando a perda dessas pessoas, muito ou pouco fizeram parte da minha construção enquanto indivíduo, tenho a minha irmã, a de sangue, que passa por uma tempestade. Houve noites em que não dormi, pensando no caminho incerto, pensando na dor da minha mãe, pensando na dor da minha irmã enquanto mãe. 
Não somos eternos, nem os momentos o são, mas podemos fazer com que eles se façam sentir mais e melhor, de forma a perdurarem no tempo como memórias. Para isso é preciso dar o nosso melhor, valorizando alguns acontecimentos, desvalorizando outros, deixando por escrito alguns. 
E amigos? Ah, os familiares que escolhemos. Que se sentam nos nossos sofás, que partilham felicidades e ansiedades. Que nos ajudam na caminhada. Que partilham garrafas, cigarros, gargalhadas, histórias e estórias. Alguns também têm passado por tormentas. Daquelas que Camões fala no Fogo de Santelmo ou na Tromba Marítma. Eu prefiro acreditar nas palavras de Pessoa como forma de as confortar: Deus ao mar ao o perigo e o abismo deu / Mas nele é que espelhou o céu. Vai ser fácil? Não sabemos. Mas podemos ter a certeza de que, se tirarmos partido das coisas boas do momento, já é meio caminho para a nossa felicidade. 

E como o mar foi e sempre será uma referência para coisas boas e más nesta vida, fui hoje à nossa praia, ver o Atlântico, naquele sítio que vamos a todas as estações, que leio, que trabalho, que apanho sol, que me atrevo ao mar, que faço caminhadas, que tiro fotografias, para entrar neste ano, como nos anteriores, da mesma forma. Percorremos o areal e as rochas, senti a maresia no rosto, o corpo frio e depois quente, marquei o areal com os meus ténis e trouxe-o para os tapetes do meu carro. 

Agradeci a Deus, à minha maneira.
 Voltei para casa, 
Acendi a lareira, 
Adormeci, 
Enervei-me, 
Jantei, 
Troquei mensagens,
Vi imensas fotografias do presente e do passado. 

Olho agora para a gata, defronte para as labaredas, a ajeitar-se no pufe,
E não tarda vou ver um filme, enquanto oiço, vindo do quarto, sons sinistros de uma série sobre bruxas. 
Há anos que escrevo, mas não tem sido quotidiano. Vamos lá ver se nestes novos anos 20 passa a ser. 
Um feliz ano novo,
Boa caminhada,
De mãos dadas, sempre.

 Sobre a mão Se pegasses na minha mão e me guiasses pelo Parnaso, Os meus dias seriam menos sedentos e sombrios, Sem os espasmos de sofr...